Mulheres sobre rodas

Quem de nós já não pensou em pegar uma bicicleta e sair por aí dando voltas ao mundo? Caminhar sem olhar para trás, sentir o vento nas têmporas e deixar o cabelo voar? Quem nunca quis pedalar e acompanhar as gaivotas? Quem alguma vez não desejou quebrar as regras sociais e se entregar à melodia […]

Quem de nós já não pensou em pegar uma bicicleta e sair por aí dando voltas ao mundo? Caminhar sem olhar para trás, sentir o vento nas têmporas e deixar o cabelo voar? Quem nunca quis pedalar e acompanhar as gaivotas? Quem alguma vez não desejou quebrar as regras sociais e se entregar à melodia do dia, deixar o ar inflar os pulmões e seguir? Perguntei um dia à minha mãe qual era o sentido da vida. Ela me disse que ainda não o tinha encontrado. Contudo, com muita ternura, contou-me que em sua juventude pensava ser a simplicidade das coisas contida nos menores detalhes, referia-se aos momentos passados à beira mar e nas horas gastas nas montanhas ouvindo um disco e lendo um livro. Mas não. Isso é pouco. Esses pensamentos já não estão mais em sua cabeça há alguns anos.   

Não há um sentido para vida. De todo modo, eu continuava à procura do meu. Foi nesse instante que voltei em minhas lembranças para minha relação com a bicicleta. Lembrei-me que se iniciou na infância, quando minha irmã, em sua loucura, comprou uma muito gira que dobrava ao meio e tudo o mais, era azul marinho. Saiu de Goiânia em Goiás e levou a danada embalada numa viagem de ônibus, quase 800 km, em direção à Xambioá. Sim, morávamos lá, naquela época. Eu fiquei em estado de encantamento durante meses e naquela noite dormi abraçada com a caixa que embalava a nossa bicicleta. Aprendi a andar nela brincando com outras tantas crianças ribeirinhas. Depois, já com um pouco de prática, subia as ladeiras mais íngremes e em cascalho, só para depois descê-las no embalo! Muitas vezes, caía e voltava para casa com os joelhos abertos. Mas não chorava e no dia seguinte ia de novo. Deixava o vento entrar em mim, soltava os braços, abraçava os ventos e seguia com um sorriso muito maior do que a bola do mundo!!!

Lembro-me que eu andava pela cidade, quase sempre, desviava-me do percurso e passava na loja em frente ao rio só para ver o garoto de que eu gostava. Aquele namoro infantil de flertes que toda a gente tem! Se eu segurei algumas vezes na mão dele foi muito! No entanto, era o suficiente para o coração disparar e eu subir na magrela, e voltar para casa numa felicidade de dar gosto. Esse foi um de meus segredos de infância, da mesma maneira que pegava uma canoa curta com minha irmã, um pouco mais velha, e descíamos rio abaixo a respirar por dentro da canoa, debaixo d´água, a imitar os botos cor de rosas que ali havia.

Voltando ao meu caso com a bicicleta, fiquei alguns anos sem comprar nenhuma. Só quando eu morei em Campinas, São Paulo, já aos 18 anos, comprei outras, mas daí eram preparadas para cross, para trilhas. Era daquelas bem caras que muita gente compra para dizer que tem dinheiro sobrando. Eu não tinha, porém comprei! Dessa vez foi de cor lilás, bem vivo. Era linda!!! Quando morei em Florianópolis a levei comigo, na esperança de fazer muitas trilhas bem fixe. Pena que quase não aconteceu.

Nós mulheres nómadas somos livres na alma e no pensamento. Aquele sonho de juventude, inocente e cheio de beleza acompanhou-me por muito tempo. A norma, muitas vezes, não me encanta, ao passo que a riqueza dos girassóis que brotam nas encostas das montanhas e o riacho a correr compõem um conjunto de sensações e de liberdade a estabelecer uma espécie de leveza em meu corpo. A natureza dilui-se em mim e eu nela. Gosto de pessoas que possam atravessar o mundo, mas também gosto de quem nunca saiu de sua aldeia, como também gosto de quem morre desprovido de afetos.

Quantas vezes eu estive a pedalar e a cabeça não parava de pensar, a questionar-me sobre o amor, sobre a vida, enquanto esforçava-me para ter mais velocidade na bicicleta. O amor só existe quando partilhamos? Eram essas perguntas que eu fazia entre uma volta e outra do pedal que movia os pensamentos. E quando estou ladeira abaixo, já sem movimentar os pés, penso nas possíveis respostas. O amor seria os encontros com xs amigxs a partilhar um copo ou a caminhar sem pressa de voltar? É o carinho diluído nos momentos pictóricos e nos encontros inesperados? O amor seria aquele instante que rimos às gargalhadas mesmo quando a piada não é engraçada, de toda maneira apresenta um episódio de flagrante intimidade?
Não sei.

O facto é que, desde que nascemos, ouvimos os outros a nos dizerem que amor é cuidado. Seria, então, o cuidado que temos com as castanheiras pensando nos amigos e nos encontros em volta da mesa durante o magusto em outubro?  É pensar em nossos afetos que nos preparamos para o magusto, desde à colheita, a escolher a lenha para fazer o fogo até chegar ao borralho para assar nossas castanhas e aquecer nos por dentro. Da mesma maneira, é por amor que pisamos nas uvas, a sová-las, a pensar que aquele vinho que se prepara será melhor do que os outros, pois será com ele que vou dividir bons momentos com xs amigxs durante alguns invernos.

Nessas datas festivas, vamos à Quinta fazer tudo isso, aproveitar um pouco das pessoas próximas e fazer alguns passeios de bicicleta pelos vales.    O verão chega em nossa aorta e queremos aproveitar o sol, o cheiro do mar, as algas em dilúvio, a água fria das cascatas e brincar um pouco de novo com a Joana, a Matilde, a Ana e a Maria. Uma vez, fomos fazer umas trilhas ecológicas às voltas da cascata do Arado, em Geres. Fomos em cinco pessoas, foi difícil, mas muito divertido. Meus momentos com a bicicleta proporcionava-me uma espécie de educação sustentável a livrar-me de meus próprios infernos, medos e fúrias. Encoraja-me a superar minhas dúvidas, sofrimentos, como se pintasse riscos leves de minha própria vida em uma tela.

Riscos alegres de uma trajetória itinerante e sem raízes. A mesma trajetória que me levou a aventurar outro dia a sair do Porto e ir comprar lenços em Fez. Não levei minha bike, é lógico, porém, lá, aluguei uma com a esperança de sentir o vento do deserto e das ruínas em meu corpo frágil. Penso que assim tive mais tempo para aproveitar a cidade e a cultura local, mesmo quando ficava perdida e gradativamente um sentimento de contentamento inundava-me toda e eu me entregava. Confesso que esta sensação me tomava de forma tênue e descontraída. Deliciei-me com as areias e as ruínas, depois com as cores dos lenços e a comida local. O embalo da música entrou pelos ouvidos e conduziu-me para outros sítios, a não pensar em opressão e tampouco nas relações conjugais de nenhum povo. Isso porque assim o penso que seja. Sou ocidental, jamais conseguirei entender aquela cultura, o ḥarām para Alah, os limites do bem e do mal, embora seja seduzida e envolvida em desejo de entregar-me àquele universo desconhecido. Como ocidental, meus olhos fixaram-se no ventre das bailarinas, na beleza e no poder de suas maquiagens e, sobretudo, os mistérios escondidos por debaixo dos véus.

Depois, no ano seguinte, fui à Londres conhecer Camden Town, onde eu andava e inspirava um oxigênio diferente, meu coração e meu sangue pulsavam acelerados. Fui à casa de Amy Winehouse, na praça que ela caminhava. Foram momentos muito alegres que tive em Londres. Em meio àquela multidão da Times Square, da Picadilly Circle, conseguia deslizar-me entre a multidão e pegar o Tube com minha bike. Depois, ia em direção ao train para Twickenham até a rua Allied House, na LAL, onde eu estudava. Ali fiz algumas amizades, com brasileiros, alemães e árabes. A mistura cultural deixava Londres muito mais fascinante.  Conheci algumas pessoas, porém era com Laura que eu mais passeava. Na companhia dela, íamos conhecendo um bairro novo por dia, cada uma com sua bike.

Voltei para Porto e nunca mais vi Laura, mas as lembranças e a saudade não me deixavam. Nem tudo são flores, há nessa vida meio cigana algo de muito duro, como não pertencemos a nenhum lugar, as pessoas também não se abrem para nós. Somos apenas um olhar oblíquo e passageiro, às vezes, uma ressaca marítima a cobrar acertos de vidas passadas. O máximo que almejamos é um encantamento com data certa de terminar. De toda maneira, nos tempos de hoje essas mulheres andarilhas estão a lutar muito decididas por respeito de quem olha de fora, porque quem está de dentro fica miudinho e perdido no vazio de lembranças e vontades que jamais se encaixam.  

Ainda assim, temos no olhar, na pele e no coração a esperança de um convívio mais digno e sem fronteiras.