Eu passarei

Eu queria ser um passarinho. Desde pequena sonhava muito com isto. Estava cada vez mais difícil. Crescia e cada segundo que passava, eu pássaro perdia-se lentamente pelo nevoeiro. Outro dia lá em minha casa lembrei-me disso devido ao grande número de pombos e de gaivotas que lá há. Tem uma senhora, a Dona Inês, que […]

Eu queria ser um passarinho. Desde pequena sonhava muito com isto. Estava cada vez mais difícil. Crescia e cada segundo que passava, eu pássaro perdia-se lentamente pelo nevoeiro. Outro dia lá em minha casa lembrei-me disso devido ao grande número de pombos e de gaivotas que lá há. Tem uma senhora, a Dona Inês, que os alimenta toda manhã, então, já viram, eles são fregueses. Após se refastelarem, faziam a digestão bem lá no alto nos telhados das casas, como se observassem o que as mulheres faziam lá dentro. Se o cheiro da comida lhes agradava, eles queriam entrar e sentar-se à mesa. Esses pensamentos pareciam demasiado exagero, mas não. Perdi as contas do número de vezes que os peguei quase a entrar pelas janelas da marquise e dos quartos. Essa confusão de real e imaginação criativa vinha quando eu me perguntava se estava mesmo a enlouquecer, respondia a mim mesma, como autoafirmação. Não, que isto! É apenas uma criação para superar tudo.

Enfim, são muitos os pensamentos durante esse confinamento. Eu, Joana sentia-me como os bois, presos em seus currais. Fico pensando se o senhor boi não se questiona também acerca de sua vida e de todos ao seu redor? Se a dona vaca não entra em depressão por ser magra, pois em vida de gado, o sucesso é para os mais gorditos. E quanto mais filhos, bezerros, quanto mais, melhor! Em muitos casos são parecidos com os humanos, em outros, obliquamente opostos.
Essas lembranças foram cortadas pelo som dos motores a ressonarem, timidamente nesses dias da mais absoluta contingência, na rua que avistava de minha janela, uma travessa que corta a Oliveira Monteiro. Em passos largos saía da marquise, passava pela cozinha, corredores e caminhava pelo quarto. Em seguida, voltava para a marquise novamente. A casa era o único espaço possível para me caber. A casa manifestava-se, não como uma caixa retangular, mas como uma espiral condensada de odores, perfumes, sabores, comidas e muitas lembranças. Passei a lembrar de minha meninice, dos pães de queijo que mamãe fazia e, para mim, era a mais pura essência de minha história: a alegria infantil, o partilhar com os irmãos, os pais e o aconchego do colo da mãe.

Em casa, a discussão era sempre a mesma. O sobrinho ajudava a verificar se estávamos todos a fazer certo os procedimentos de higiene. As informações visuais e auditivas eram constantes, nem sempre apontando para mesma direção. A roupa que saiam deveria ser recolhida ali mesmo, na entrada, e iam direto para a máquina em água quente. Para os sapatos, esses coitados nunca mais puseram seus solados para dentro, ficavam todos em uma caixa na entrada. As luvas iam direto para o lixo. Nua, eu ia para o banheiro, enquanto a mais pequena passava detergente e álcool em gel em toda a compra e no balcão da cozinha e nos sacos de compras. Depois, limpava as fechaduras da porta.

Era mesmo uma verdadeira caça ao vírus. Todos os dias, a rotina era meticulosa para sair. Púnhamos sempre os mesmos sapatos para caminhar nas ruas, luvas, cabelos presos, não falar muito e ser rápido. Era sempre eu que fazia as compras. O sobrinho menor não queria sair nem levar o lixo na esquina, de tanto receio. A mãe lhe dissera outro dia que as pessoas que tinham asmas faziam parte do grupo de risco e, desde esse dia nem precisavam convidar o miúdo para sair que ele não ia. Isso, porque ele não sabia que se precisasse de respirador artificial entraria para a fila disputada de pessoas imigrantes e, ali, ainda havia uma seleção por classe, cor, sexo etc. Dentro de casa a situação era muitas vezes estressante, as crianças ficavam irritadas, nada conseguia acalmá-los. Com a locomoção limitada todos ficávamos cansados íamos nos esquecendo e nem querendo mais cumprir com aquela rotina exaustiva de cuidados e de guerra. Sem os compromissos sociais, sem a convivência com os amigos, a dança às terças e quartas-feiras e sábados, o menor pedia atenção em tempo integral. As aulas virtuais são torturas para os pais, os filhos acumulam-se de energia e de pressão psicológica por não ter convívio com os colegas, pelo ritmo intenso, muito desse ensino foi transferido para a família. Tudo isto explicava o porquê da ideia de ser pássaro esvaía-se pela neblina.

Mediante toda essa confusão, outro dia saí de casa para caminhar um pouco. Fiquei mesmo muito feliz quando em plena melancolia me permiti andar pelas ruas à volta de casa. Mesmo, ali, na porta senti o ar, o deixei entrar pelos alvéolos e pulmões e depois expirei aliviando-me. Uma gaivota passou raspando em minha cabeça muito rapidamente, e consegui acompanhá-la, fiz tanta força, para ser gaivota. E o que aconteceu? Tornou-se um pássaro alado, híbrido muito bonito. Desse dia em diante eu só voltava à terra para me alimentar, preferia voar e estar no ar.

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