Conto e fotografia: Elizângela Gonçalves Pinheiro
Eu e o amar
Joana, brasileira, de quase 70 anos, divide um apartamento com a irmã e seus filhos, todos vivem no Porto, Portugal, há onze anos. Sozinhos, eles aumentavam ainda mais a sua vulnerabilidade nesse período de pandemia. Mediante a suspensão da vida, do trabalho adicionados à mudança de hábitos exigida durante o isolamento. As lembranças manifestam-se num contínuo agonizante, perante o medo iminente de morte. O distanciamento das pessoas deixava Joana fria em face de memórias latentes e angustiantes. As memórias do passado e do presente mesclavam-se num outro tempo indefinido diante do drama de Joana, desejosa de um relacionamento e de não se isolar. Essa vontade passa a ser duplo para ela: pela pandemia e pela falta de um companheiro.
- Outro dia, fui apresentada ao Nuno, sabia? Joana disse à irmã.
Nuno, português, ator, foi apresentado a ela para que ele a ajudasse a escrever e a dirigir uma peça de teatro. Se ao menos tivesse tido um romance com Nuno? Mas não! Ele a seduziu e a deixou em estado de languidez. Joana não conseguia aceitar o vai e vem dele. No começo de todo esse dilema na vida dela, a faz mudar bruscamente. Logo ela, que era tão irradiante e determinada. Fica confusa e inerte. A paixão, ou ao menos a ilusão da paixão a levou a se trancar em si mesma, com os seus sentimentos.
Nestas horas de muita pressão psicológica que o confinamento provocava, a memória, a visão ficava turva, a memória olfativa perturbada e confusa, já não havia passado nem presente. O caos instalava-se. A conversa de Joana e sua irmã era recheada de anacolutos, ora de lembranças saudosas da família que já não viam há muito tempo, ora a negação do medo provocado pelos números noticiados da pandemia. Diante deste estado de petrificação, ela perguntava-se, «Voltaremos ao normal?».
Será que conseguiria se libertar de tudo isto e seguir seu caminho? O medo e a solidão muitas vezes a impediu. Aos poucos, acabou por se desvencilhar dessas amarras todas como se desatasse os nós de toda uma vida. Mesmo com a pandemia ela sabia que precisava sair, pegar o vento na cara, andar, correr até a praia na Foz, ou a da Ribeira. Um dos dias que ela foi até à praia dos Ingleses, na Foz, conheceu um homem que surfava muito além das pedras. Mesmo assim, ela acenou para ele por impulso, por alegria de ser um dia lindo e ensolarado e, principalmente, por ela se sentir viva e aberta para conhecer pessoas, com vontade de deixar todos os pensamentos e o Nuno para trás. Ele respondeu e mesmo, ali, na água, distante não parou mais de olhá-la. Ela entrou no mar e ele ficava a observá-la. Ela se sentou na areia e concentrou-se na imensidão do azul daquele mar. E ele, ali, como um ponto a marcar aquelas águas que se reviravam mansamente. Quando saiu, sentou-se à sua beira. E não pararam mais de conversar, de se olharem mutuamente, de sorrir um para o outro de sentirem a brisa. As ondas, naquele imenso mar aberto, jorravam águas e mercúrio na cara deles. Isso provocava-lhes um estado de êxtase.