Estilhaçadas – Crônica

Estilhaçadas: Perfomance de Aline Carvalho e fotografia: Jade Oliveira Bastos Após dias de clausura, e novamente em contingência aqui em Portugal, eu uma imigrante brasileira, conversava com minha irmã sobre um dos dilemas do confinamento, as perguntas vinham como ondas e avalanches, resultado de absoluta angústia sobre o tempo que iria durar este mal-estar. Ela […]

Estilhaçadas: Perfomance de Aline Carvalho e fotografia: Jade Oliveira Bastos

Após dias de clausura, e novamente em contingência aqui em Portugal, eu uma imigrante brasileira, conversava com minha irmã sobre um dos dilemas do confinamento, as perguntas vinham como ondas e avalanches, resultado de absoluta angústia sobre o tempo que iria durar este mal-estar. Ela ia pelas indagações acerca da própria pandemia. Quando voltará ao normal? Se voltará? O quê é o normal? Desumano? Estaria esta sociedade preparada ou precisaria renascer? Enquanto eu, Ana, me enredava para perturbações antigas como o amor. As pessoas protegem-se com carapaças modernas repletas de aplicativos que acabam por isolar cada um num casulo próprio e inatingível, ampliando de maneira irreversível o vazio de sentir e de viver o amor. O que se tem hoje é uma enorme lacuna de cacos agudos que cortam por dentro sem que a pessoa se aperceba. O que fazer para amenizar essa dor e ampliar a esperança no outro? Não sei! Eu disse-lhe.

Nesse pensamento de amor caótico e conturbado, eu pensava nas realidades plausíveis de cada um. Considerava, um problema sintomático e perigoso o das mulheres que sofrem violência doméstica ou que vivem relações abusivas e são varridas para o canto da casa ou postas debaixo dos tapetes, sem ninguém resolver nada.

Coitadinhas delas, precisam ficar em casa em tempo integral, a cuidar dos filhotes, dos afazeres domésticos e, ainda, a suportarem seus maridos reclamando, da comida ruim, das roupas malpassadas. Algumas a levarem tapas na cara, é mesmo uma situação melindrosa. Os índices e as notícias sobre elas parecem ter perdido a importância nesses últimos dias. Desabafei para minha irmã.
Sim, querida, você já está falando com a entonação e o jeito português.

Pois, se desde que aqui cheguei fui obrigada a me comportar assim e aprender minimamente a língua!
Voltando ao assunto, como andava seu trabalho em defesa das mulheres, antes da quarentena? Perguntou-me minha irmã.

Em resposta eu disse-lhe que ia bem, ainda no início, estava providenciando uma plataforma e tantos outros trabalhos artísticos, de pintura e de shows. Sabia que eu estava a planejar uma exposição de algumas escultoras? Sentia-me muito preenchida com este trabalho. Dedicava-me integralmente, pesquisava, escrevia, e muitas vezes organizava encontros de debates. Conheci algumas mulheres e cada uma com histórias diferentes e interessantes. O Porto tem disso, o turismo e a imigração movimentam a cidade e a vida, contudo, por outro lado, essas duas coisas acentuam ainda mais as diferenças e as violências. Esse meu trabalho mexe muito comigo, com minha postura no dia a dia. Inclusive punha-me a rever conceitos velhos e tentar acompanhar os novos movimentos sociais. De que adianta toda essa luta se eu não posso fazer quase nada? É muito angustiante começar a pensar nos dilemas. O que está me dizendo? Vou te contar. Tens dois minutos agora? Sim, manda lá.

Eu preciso quebrar meus dramas, fragmentá-los e expurgá-los. Contudo, ouço cada história que fico sem fôlego. Absorvo muito, sofro com elas. Tanto que a violência com essas mulheres provocam feridas em mim. E eu reajo como posso. Quantas vezes eu quis parar de ensaboar as mãos, um ato que me consome lentamente e sempre um pouco mais. Toda hora lavo minhas mãos, na verdade aproveito a deixa da pandemia, tento tirar a sujidade de meu próprio corpo. Lavo as até quase sangrar, na esperança de tirar da memória as histórias. Escute a última, de uma mulher ucraniana que vive com um homem russo.
Ela me disse que ele tantas vezes fora rude e insensível com ela. Porém, quando ele chega perto, seu cheiro de cássis com almíscar a deixa embriagada. É só ele tocá-la com aquelas mãos grandes e determinadas que retira-lhe a ação. A mulher fica sempre inerte. A grande questão é o sexo, a cama. Ali, ela se entrega e esquece tudo, como se pelo sexo viesse o perdão e a aceitação. Ela me dizia: eu não tenho ânimo mais para pô-lo fora de casa, trocar a fechadura e dar um basta em tudo. Ficar sozinha, ouvir meus gritos de solidão é muito pior. Aceito tudo para não discutir e brigar. Todas as vezes que ele chega em casa e ela está tocando, o homem sempre reclama. Outro dia, pediu-lhe para tocar uma música do Salvador Sobral, porque ele gostava. Ela disse que não sabia, que não havia aprendido. Ele grita com ar de ironia: outra vez? E saiu batendo a porta. Quando voltou, ela ainda estava lá ao piano. Foi logo dizendo: estás a tocar de novo, miúda? Ela respondeu-lhe afirmativamente com a cabeça. E disse-lhe o quanto a música a acalmava, desde que sua mãe dedilhava o piano com ela ao colo. João, desde pequenita que mamãe e eu tocámos, a música faz-me imenso bem e tornou-se o meu lugar sagrado. De nada adiantou, acredita? Ele foi logo…

Podias ao menos mudar de estilo, amor? Sempre dizes que fará um gosto meu, e nada. Estás a me enrolar e nunca me atendes.

Quantas vezes, fantasiei nele uma visão de ternura? Cheguei a acreditar mesmo que era um homem tranquilo e sensato. Era pretexto para esquecer das brutalidades. Tudo em nome de bom sexo, tirando apenas os tapas na cara enquanto me fode. Por mais que eu tire ou peça para parar, ele não me atende, ao contrário, continua a dar-me na cara. Era prazer, funcionava como um troféu, diante da necessidade de ali se agigantar, e em troca me diminuir até ficar do tamanho de uma formiguinha. Aquelas coisas de virilidade masculina, de macho alfa. Eu faço o que quiser com esta bonequinha! Disse-me ela. Eu a escutava e pensava ao mesmo tempo no quanto um acontecimento desses pode ser vulgar na vida de qualquer uma de nós.

Olhe, essa ucraniana tinha consciência, sabe o que me disse? Esses atos me sufocam para além do sexo, muito além da cama. Eu me questiono, quantas vezes tentei dizer coisas do dia a dia que toda gente fala e ele me silenciou? João, estou sem emprego, sem dinheiro, não consigo pagar a luz, comprar o gás, não consigo… E ele me cortava e xiuuuu, lá vens de novo a reclamar! És um mar de lamentações, mulher. Outro dia foi: o José do açougue me cobrou as contas. Por que não dizes coisas boas? Não tens nada de bom? Beba teu remedinho, vai!!! Vou para o futebol. Viste minha chuteira nova?

Essas vozes ficam dentro de mim em plena época em que o Brasil indigna-se com o caso de Kelly, estuprada, violentada e morta porquê deu carona. Culpabilizar a vítima tornou-se uma cultura chofre e de fundo machista e despudorado. Isto porque estamos falando de mulheres brancas, agora imagina a o sofrimento e a quantidade de casos de mulheres negras? A quantidade de estupros e violências nas favelas são pavorosas. Não se engane, pois aqui em Portugal a violência e o encarceramento das mulheres pretas, sobretudo de origem africana é espantoso. Até quando essas mulheres continuarão a ser vítimas nessa sociedade de brancos? Todas essas coisas reviram por dentro de mim até eu ficar estilhaçada, ao ponto de desacreditar nas relações. Quantas vezes já me questionei sobre minhas próprias experiências, sobre aquilo que julgo ser bom ou mau para mim. E até hoje não consegui resolver muito. Claro, irmã essas coisas não dependem só de si.

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