Amon – Crônica

Crônica e fotografia: Amon de Elizângela Gonçalves Pinheiro Amon Naquele instante, Joana recordou-se de uma vez em que ela, Nuno e outras pessoas saíram para beber uns copos, após um lançamento de um livro de Lobo Antunes. Naquele instante percebeu que quase todas as pessoas que ali estavam tinham sido apresentadas por Nuno. Isso não […]

Crônica e fotografia: Amon de Elizângela Gonçalves Pinheiro

Amon

Naquele instante, Joana recordou-se de uma vez em que ela, Nuno e outras pessoas saíram para beber uns copos, após um lançamento de um livro de Lobo Antunes. Naquele instante percebeu que quase todas as pessoas que ali estavam tinham sido apresentadas por Nuno. Isso não era bom, demonstrava o início de uma certa dependência. Joaquim foi a primeira pessoa que ele apresentou a ela. Foi num dia em que Joana iria apresentava uma peça com Nuno, porém ele não foi. Pediu a Joaquim para substituí-lo. Enfim, agora estavam lá, todos. E Joana seria a diretora da peça dela e Nuno predispôs-se a ajudá-la, a revisar o texto, a indicar melhorias, tudo que fosse preciso, ele estaria lá. A verdade era que ambos eram de um experimentalismo fascinante, mesmo assim, acreditavam que seriam melhores do que os outros, acreditavam na dedicação e na vontade, no amor que tinham pela criação artística, na improvisação de cena quando o texto não vinha à mente e, para eles, isso bastava. Além de que, a companhia de teatro que lhes davam suporte era muito boa. Uma das atrizes fazia parte do grupo de teatro São João, a outra era a incrível Aurora Gaia.

  • Uma peça tão bonita a minha, irmã. Ela conta a história de 3 mulheres que andam pelo mundo. Cada uma passou por países diferentes, Ana pela Turquia, Alessandra por Praga e Ângela por África. Ana traz a importância dos sete véus para a tradição da mulher árabe, Alessandra é uma bailarina filha de pais húngaros e vive um grande amor com um homem romeno e o pai dela não o aceita. Ângela traz a magia e a beleza culinária e a dança das mulheres africanas. Todas três se conhecem na cidade do Porto e tornam-se amigas e que desabafam seus dramas uma com a outra e dividem entre si suas limitações e suas vontades de viverem num mundo melhor com menos preconceito.

A irmã, prestava atenção atentamente na história de Joana.

  • Fomos fazer o primeiro ensaio, antes mesmo de ter finalizado a escrita. Era dia de quinta-feira, no Parque da cidade, bem ao meio, do lado direito do lago, há um arbusto que ao fim de novembro está repleto de folhas ao chão, com cor de ferrugem. Os pássaros a sobrevoarem o lago, os patos a nadarem, as gaivotas com as pombas a competirem entre si pelas migalhas de pão. Era mesmo um belo cenário.

E os cinco estavam convictos de que investiriam tudo para um bom resultado. A primeira cena, foi feita com uma mulher de meia idade, muito bonita e competente. Foi, já, de início que Joana percebeu qualquer coisa de errado, pois a mulher agia como se fosse estrela, mesmo sem ser do teatro. Curiosamente não admitia dividir as atenções, comportava-se como se fosse brilhante. Passou a ficar estranha como se estivesse noutra dimensão, totalmente absorta pelas palavras de Nuno. Essa voz que a seduzia, ao dizer:

  • Realmente já tinha ouvido falar de como posavas bem, tinha jeito para as câmaras e para o palco. Nuno disse de maneira que Joana o ouvisse.

A mulher se desenroscava de tal maneira que dava gosto de assistir. Ria com estardalhaços. Todos comportavam-se como se Joana não existisse. Havia qualquer coisa de estranho, de extraordinário, porém Joana não conseguia perceber, na verdade precisava não se desconcentrar dos ensaios para dirigir a peça.

O que Joana não havia percebido era o que estava por detrás disso. Aquelas palavras que saiam com força da boca de Nuno continham uma energia sexual vinda das entranhas e rompiam os dentes com suavidade e doçura, em direção à miúda. Era uma cena bizarra que Nuno precisava para ficar excitado. Ao provocar Joana e Joaquim divertia-se muito com esse jogo.

Somente mais tarde, Joana soube que o encantamento daquela miúda fora feito por uma espécie de ritual de magia proveniente da tradição dos Daimons,os diabos ancestrais da alta magia. Nuno, em silêncio, repetia um mantra a aceder aos amuletos reservados às múmias Tutmósis III, muito comuns no Egito e em todos os países africanos. Naquele caso, Joaquim invocava Amon, Deus do amor, da sedução, do sexo e, principalmente, criador de todos os Deuses e de todas coisas. A mulher ficou de uma tal forma, que os fez lembrar de Lilith, totalmente entregue e apaixonada instantaneamente.

Joana mesmo sentindo-se enervada e enciumada, controlou-se. Mal sabia, que além disso, havia ali, muito mais coisas que se revelariam. Joaquim, demonstrou ali, ser cúmplice em todos os sentidos, sabia dos detalhes, de como Nuno gostava das coisas…foram revelando-se de uma intimidade descomunal. Na hora de passarem a cena, trocaram de camisa, de celulares, de sapatos como se o cheiro um do outro trouxesse inspiração.

Isso fez com que Joana ficasse muda e completamente sem forças, não estava preparada para tudo aquilo. Seria ela uma mulher fraca?

Joana chegou em casa com esse mesmo pensamento – como posso ser tão fraca e ingênua?

Em relação a Joaquim, ela era aceitável para ajudá-lo a satisfazer os desejos sádicos de Nuno. Afinal, no amor vale tudo. Quando Joana já havia cumprido com seu papel, não existiria mais, o triangulo desapareceria e os dois tomariam a forma definitiva de casal.

Como se não bastassem essas revelações, na volta para casa, a primeira a ser deixada foi Joana, é claro. Após ela descer na Rua da Constituição, Joaquim perguntou a Nuno onde era exatamente a casa dela. Com uma voz muito dócil e domesticada, Nuno deu-lhe os detalhes. No dia seguinte à noite, quando Joana voltou para casa, já quase a chegar, bem na esquina da travessa da Quinta Amarela, havia dois rapazes a fechar a rua, impedindo-a de passar. Num ímpeto, Joana recuou assustada. Olhou firmemente para eles e, só depois, deixaram-na passar. Havia um outro homem debaixo do prédio mais adiante, quase entrando na Rua da Constituição.

Ciente da situação, caminhou firme até a porta de sua casa e gritou lá de baixo para os filhos da irmã. O filho menor apareceu à janela. Foi nessa altura que os três seguiram até o fim da rua. Depois disso, ao entrar em casa, Joana contou para sua irmã sobre a sensação de ter sido perseguida na rua até em casa. Despiu-se rápido e tomou um banho, esfregou-se toda como se estivesse a tirar toda aquela imundice de si. Passava a bucha com bastante sabão mais de três vezes no mesmo lugar. Com náuseas começou a vomitar na sanita. Só depois disso, foi para a cama e, quase sem forças ligou para uma tia distante, mas que tinha o dom das profecias místicas. Depois, da tia indicar-lhe para fazer uma oração à Nossa Senhora de Fátima com um copo de água a pensar em coisas boas, ela deveria acreditar no poder das águas, naquilo que elas trazem de calmaria e de amor para o ser humano. Conseguiu acalmar-se pouco a pouco e pôs um mantra e deitou-se na cama e dormiu profundamente.

A miúda teve mesmo uma noite difícil, tremia na cama, rogava aos Deuses egípcios proteção, rezava à Isis, pedindo proteção dos oráculos e das forças femininas geradoras do universo. O pior de tudo era saber que no dia seguinte teriam de continuar a trabalhar juntos, ela teria de se comportar como se não soubesse de nada, como se não sentisse nada e como se tudo fosse tudo totalmente normal.
Tudo isso era um passado que ainda a acompanhava, pois com a pandemia tudo foi suspenso sem fim definitivo. O confinamento acabou por aniquilar totalmente o poder de ação de Joana, estava ela agora em estado de letargia e de profundo mal-estar. Se faz muito mal ao gado, imaginem às pessoas. Os traumas voltam, as últimas sensações de dor também retornam em nossas mentes.